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Roteiros Turísticos

Em Portugal, um mergulho nas sardinhas

Todas as férias são, de alguma forma, uma observação de outras pessoas trabalhando enquanto você não trabalha. Uma estadia em hotel é testemunho de arrumadeiras e recepcionistas; o jantar vê chefs, ajudantes e garçons; uma excursão requer um guia turístico, um motorista, um mecânico de barcos, se você tiver sorte. Mas há algo de peculiar em ir a uma fábrica em operação para ficar no alto de uma plataforma elevada observando os locais fazerem um trabalho duro e antiquado, enquanto você escapa de seu emprego.

Porto, a segunda maior cidade de Portugal, é a capital de uma das principais indústrias do país: as conservas de peixe. As sardinhas enlatadas estão vivendo seu momento no mundo gastronômico. Com latas primorosamente decoradas, uma sensação de sustentabilidade (ainda que questionável) e a devassidão das coisas encharcadas, elas vêm conquistando seguidores devotados entre os jovens que as amam de todo o coração. Nas Conservas Pinhais e Cia, em Matosinhos, fábrica de conservas de peixe a poucos quilômetros do centro do Porto, os visitantes são convidados a ver que a sua nova guloseima favorita é, na verdade, uma operação muito antiga.

Fundada em 1920 por dois irmãos e dois sócios externos, a Pinhais é considerada uma das melhores fornecedoras de conservas do saturado mercado português. A fábrica da empresa é uma das poucas que sobreviveu à grande mudança da produção de sardinha para a África Ocidental, onde hoje é enlatada mais da metade de todas as sardinhas. As sardinhas são as prediletas entre os clientes da cidade e as favoritas em toda a Europa, embora os clientes americanos possam estar mais familiarizados com a marca internacional da empresa, Nuri, que é amarela brilhante e está disponível em lojas especializadas. Os peixes são conhecidos por sua alta qualidade e tempero perfeito – e agora, em um tour pela fábrica, os fãs de sardinha podem ver exatamente como são feitos.

A força de trabalho é quase toda feminina, uma tradição estabelecida pelo fato de que, historicamente, os homens iam para o mar enquanto as mulheres ficavam para trás e lidavam com a pesca. Não é incomum que várias gerações de mulheres trabalhem na fábrica, com mães, filhas e tias encontrando ali empregos estáveis. A visita à fábrica de sardinhas começa com o vídeo de uma filha portuguesa à espera do pai que luta contra uma tempestade (ele sobrevive).

“Esse filme é dedicado a todas as famílias dos nossos pescadores, pelo estresse que sofrem”, disse a guia Olga Santos no início de um passeio recente. Assim começa a incursão no maravilhoso e reverente mundo das sardinhas enlatadas.

O passeio de noventa minutos, que Pinhais introduziu em novembro de 2021, começa em um escritório construído originalmente em 1926 e cheio de telefones de discar e sistemas de roldanas nos quais os pedidos eram amarrados a uma corda e enviados para o chão da fábrica.

Após o vídeo das famílias de pescadores e um outro sobre como são obtidos os temperos do peixe, a tela sobe para revelar uma janela que dá para a fábrica em pleno funcionamento. Você sai da área de exibição impecavelmente decorada – os fundadores originais moldaram a escada de modo que, quando você olha para o salão da fábrica, vê o contorno de uma sardinha – e vai para uma área de trabalho impecável.

Depois de vestir um aparato de proteção, você entra por uma passarela que contorna a borda de um piso quase aberto, dividido apenas por janelas em arco, exceto por alguns cubículos onde funcionários trabalham em laptops. A primeira coisa que você vê é uma mesa de mulheres cortando pimenta, louro e picles para rechear as versões picantes das quatro variedades de sardinha da empresa, que são oferecidas em molho de tomate ou azeite.

Na área seguinte, os peixes são banhados em água salgada antes de terem as cabeças e caudas cortadas com facas de peixe, o que deixa alguns dos aventais manchados de sangue e tripas. Todas as peças extras vão para fabricantes de alimentos para animais, conta Santos.

Após os cortes, os corpos restantes são colocados em um recipiente vertical, dentro de compartimentos individuais que fazem parecer que dezenas de sardinhas sem cabeça estão assistindo a uma palestra. O auditório passa por uma ducha antes de entrar em um forno imenso, onde os peixes são cozidos por 15 minutos. Segue-se o delicado acondicionamento do peixe nas suas latas, à mão, antes de as latas serem enchidas com azeite por meio de um processo automatizado, introduzido há alguns anos. Em um livro promocional que você pode adquirir na loja de presentes, algumas operárias lamentam a chegada da nova máquina, lembrando-se com carinho do tempo em que ficavam “cobertas” de azeite, que vem do Vale do Douro, ali perto.

As latas são seladas por máquina, o que explica parte do barulho no chão da fábrica. Também é alto o fluxo constante de água, que ressoa por toda a fábrica enquanto as sardinhas são lavadas várias vezes antes de serem cozidas. Outros ruídos são mais difíceis de identificar: o spray de azeite, as rodas das polias rolando o peixe de estação em estação e os fornos a vapor parecem criar clamor suficiente para que os visitantes recebam fones de ouvido para ouvir a guia.

Por fim, tudo é embalado à velocidade da luz. Você tem a chance de tentar fazer essa parte por conta própria em uma sala fechada depois de sair do passeio e se desvencilhar do EPI, mas é impossível igualar a destreza das embaladoras do chão da fábrica que trabalham os papéis amarelo, verde e azul com espantosa facilidade.

Santos nos contou que “nos dias bons” as mulheres cantam. E, quando entramos, o chão da fábrica realmente estava em coro, embora fosse impossível discernir as palavras, mesmo se você falasse português. É difícil saber se o canto é espontâneo, mas o mito das mulheres cantando surge nas conversas com habitantes locais que conhecem a fábrica. Independentemente disso, parece bem provável que cantar seja a melhor maneira de se comunicar com o zumbido alto da fábrica, seja um dia bom ou não.

O passeio termina com uma degustação das sardinhas que você acabou de ver, combinadas com pão de uma padaria local e vinho opcional. As sardinhas, é preciso dizer, são deliciosas. (E o cheiro da fábrica é de sardinhas recém-pescadas entrando e saindo da água salgada).

“Adoro sardinhas”, me disse a entusiasmada Sandra van Diessen, 57 anos, vinda da Holanda, após o passeio, enquanto debatíamos os méritos de nossas amostras grátis. Depois de abrir no outono passado e, com cerca de 70 passeios oferecidos por semana, em inglês, espanhol, português e francês, a fábrica já recebeu até agora 2.821 fãs de sardinha. (Os passeios custam 14 euros por adulto, com três euros extra para vinho; oito euros para crianças).

A cidade do Porto parecia se orgulhar da sua indústria mundial. Por toda a cidade, todos com quem conversei sobre a fábrica de Pinhais ecoaram os mesmos sentimentos: são bons empregos, são trabalhadoras queridas e a existência da fábrica é um mérito para a região.

“É uma coisa preciosa para nós”, disse Marta Azevedo, diretora de comunicação da ANCIP, o maior sindicato de conservas de Portugal. “É o melhor peixe enlatado que temos, é o melhor lugar para trabalhar”.

Mas e o salário? “Não é muito bom”, ela admitiu, estimando que as mulheres ganhem cerca de 800 euros por mês, ou cerca de US$ 832. “Mas em Portugal os salários são muito baixos”, continuou. “É um bom dinheiro, para Portugal”.

As conservas de sardinha são um prato comum servido em Portugal e as lojas especializadas da cidade, como a imaculada Loja das Conservas, na ladeira da Rua de Mouzinho da Silveira, a poucos quarteirões do rio Douro, dedicam-se a celebrar os produtos Pinhais, juntamente com outras marcas locais, como a Minerva. Parceria com a ANCIP, a Loja ainda não retomou suas degustações desde a pandemia, mas a vizinha Mercearia das Flores, na mais calma Rua das Flores, oferece degustações completas. Ambas as lojas, assim como a fábrica, são dirigidas por mulheres, e você pode degustar suas sardinhas acompanhadas com torradas, vinhos locais e chocolates finos.

Para uma versão mais extravagante do clássico prato de pão e peixe, a sanduicheira A Sandeira combina as iguarias enlatadas com uma perfeita pasta de pimenta vermelha, tudo servido em porcelanas vintage de uma loja das proximidades. Ali perto, o bar Aduela, situado na Rua das Oliveiras, também serve o prato mais clássico: sardinha na torrada com tomate fresco. Especialmente perfeito para quem quer gastar muito pouco em um local badalado, é um ótimo lugar para começar um tour de sardinha.

Talvez exista uma pequena rixa entre quem serve a sardinha fresca e quem a serve enlatada, segundo o dono da Loja das Conservas, que me disse com um ar sombrio que “ninguém sabe” porque é que os restaurantes mais requintados não servem a famosa conserva da cidade. Os visitantes que querem provar o peixe fresco têm muitas opções, entre elas a excelente Meia-Nau, onde a sardinha é grelhada à perfeição. O restaurante moderno, localizado na chique Travessa de Cedofeita, exige reserva para o jantar, mas o almoço é mais aberto a visitantes sem planos. Se você perguntar sobre o debate fresco versus enlatado, não deixe de mencionar a Loja – o dono da Meia-Nau, ao que parece, é filho do fundador. Afinal, no Porto, sardinha é um negócio de família.

/TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

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